domingo, 3 de julho de 2011

HISTÓRIAS DE VIDA



A história da nossa vida é um patrimônio. É o nosso legado ou a nossa lenda pessoal em construção permanente, que se inicia desde muito cedo e vai até nosso último suspiro. É formada pelas muitas histórias que construímos ao longo da existência, nessa caminhada por entre belas paisagens ou tempestades furiosas. E o mais importante é que cada indivíduo tem a sua história única. Por mais que as pessoas convivam, é impossível que montem a mesma história, até porque não existe uma única realidade. A realidade também é uma leitura individual, e numa mesma situação, um pode achar a situação terrível e o outro morrer de rir, tão somente porque seus filtros de percepção tem modalidades diferentes de interpretação das coisas.
Pessoas mais velhas tem uma longa trajetória, e portanto muita coisa para contar, sendo importantíssimo que tenham para quem contar. É uma pena ver tanta gente desinteressada pelas experiências dos que já chegaram a um volume imenso delas.
Muitos idosos sentem grande prazer em compartilhar suas experiências de vida. Há poucos dias, conversei com uma senhora de cento e dois anos, com quem convivi por algum tempo, que possui uma memória do passado íntegra. Simpática e com muita vontade de conversar, começou me contando sua vida profissional que transgredia os costumes da época, onde o lugar da mulher era em casa. Ela foi uma mulher a frente da sua época, pois fumava, jogava em cassinos e bebia. Foi logo contando sua infância, peculiaridades dos pais, irmãos, da casa onde morava. Logo fui me encantando pelos detalhes da história que, além de bela, trazia dados relativos aos costumes do Brasil há mais de cem anos: o flertar, o fato de pretendentes a namorados pedirem permissão aos pais da moça para namorar, a recém-inserção da mulher no mercado de trabalho, as roupas da época, dentre outras coisas que mudaram significativamente com o passar dos anos.
Outra coisa me chamou a atenção: ela relatou suas histórias com tanta alegria e entusiasmo, que em momento algum deixou transparecer tristeza por estar no final de uma vida intensamente vivida. Transmitiu a saudade de pessoas que até hoje marcam sua vida, e com quem dividiu por muitos anos sua história. Porém o relato desta história de vida faz com que este fim pertença apenas ao domínio real, já que na esfera do simbólico esta história continua existindo, em lembranças vivas e relatos afetuosos.
Infelizmente, muitos idosos não gostam ou não têm oportunidade de compartilhar sua história, já que nossa sociedade acaba deixando-os em segundo plano e considera este tipo de atitude saudável como constante divagação repetitiva. As pessoas esquecem que o idoso pode ser um livro vivo de sua própria história e da história de uma família, de um povo, de um país, de uma sociedade. É o repositório vivo de muitos acontecimentos, alguns de grande importância para a história da humanidade.
É importante estimularmos este tipo de relato nos idosos, já que todos podem se beneficiar com esta interação. Importante ressaltar que na Doença de Alzheimer a memória de longo prazo é a parte da memória que fica preservada por mais tempo, e por isto, estimular o relato da história de vida é uma forma de manter este segmento da memória ativo. É a partir do relato da história de vida do outro que nos situamos em nosso contexto histórico, ou mesmo que nos descobrimos como seres contemporâneos de um tempo diferente, porém que ainda carregam marcas deste passado que outrora foi presente de muitos outros, que ainda vivem conosco no nosso presente.
Vamos exercitar nosso amor e paciência, falamos que perdemos tempo escutando histórias de idosos, mas pense bem, acho que ganhamos muito escutando os mais velhos, pode ser que hoje achemos até que seus conselhos são inúteis, mas com o passar do tempo vemos que tanta experiência não foi em vão: " Eles tinham razão!."
(Homenagem a Nelson Marques de Oliveira, meu pai, desencarnado. Um homem sábio e grande contador de histórias).

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